A mão do Homem na emergência de doenças microbianas

Teresa Cardoso

A mão do Homem moderno sempre foi pródiga em devastações. Mas, nunca antes como na atualidade, estas tiveram repercussões tão graves nas características do planeta e na aparente ordem mundial. A Terra é a nossa única casa, mas nós não somos os seus únicos habitantes. E, apesar do nosso domínio intelectual, existem outros habitantes que não vamos querer ter como adversários.
Em particular, refiro-me ao admirável mundo microbiano que, apesar de invisível aos nossos olhos nus, acarreta uma ambivalência desconcertante – é uma fonte de valiosos recursos dos quais a nossa vida depende, mas também de inegáveis ameaças efetivas e potenciais. O papel dos microrganismos é de tal modo imponente que entraríamos em colapso dentro de um ano, se o planeta se tornasse asséptico. Contudo, muitos destes seres completamente desprovidos de racionalidade, alguns dos quais nem vivos são, como é o caso dos vírus, conseguem também (mediante contextos propícios) perpetrar-nos espadas pela calada, beneficiando do facto de não serem geralmente percetíveis através dos nossos sentidos. E, assim, deixar-nos doentes e eventualmente levar-nos à morte. Estes microrganismos são designados agentes patogénicos. O inimigo pode estar à espreita em qualquer esquina, mas há esquinas que, por uma multiplicidade de razões, deveríamos evitar contornar.
E quais são essas esquinas? São, por exemplo, aquelas que nos levam até aos ecossistemas naturais recônditos, para os destruirmos ou explorarmos exaustivamente os seus recursos. As desflorestações, a caça e o tráfico de espécies selvagens e autóctones são exemplos de uma ação antrópica demolidora que, perpetuada no tempo e no espaço, provoca desequilíbrios na biosfera que, por sua, vez ameaçam a saúde do planeta e a nossa. O preço que pagamos por invadir comunidades naturais e explorar recursos biológicos é muito elevado, mas ainda não nos apercebemos disso (ou, pelo menos, não todos).
Com melhores ou piores intenções, entramos na gruta, na floresta ou no pântano profundos, e contactamos com animais selvagens. Estes são reservatórios de muitos agentes patogénicos até então desconhecidos para nós e para os nossos sistemas imunitários. Numa primeira fase, após a transmissão ao ser humano, até podem não conseguir causar-nos doença. Contudo, juntando-se um contacto próximo e continuado entre Homem e microrganismos (frequentemente, utilizando outros animais como intermediários) à facilidade de ocorrência de mutações nos últimos, é possível que se dê o salto da barreira da espécie, e passamos a ser mais uma opção no seu cardápio. Isto é, microrganismos endógenos de animais exóticos ou seus patógenos exógenos passam a conseguir causar-nos doenças infecciosas para as quais poderemos não ter soluções terapêuticas ou profiláticas.
Abatemos árvores aos milhares, isto é, consumidores de dióxido de carbono, e o efeito de estufa ultrapassa os limites do benigno. E, depois? No Ártico, o permafrost derrete e pensa-se, com fundamento, que em consequência possamos vir a ficar expostos a um conjunto de espécies microbianas que ali se escondem há milhões de anos. Sendo incógnitas para o nosso sistema imunitário e para a ciência, representarão um conjunto de perigos ocultos. À medida que o planeta aquece, espera-se também que os climas tropicais se estendam para outras latitudes, em direção aos polos. E, os mosquitos vão atrás e propagam-se. Estes insetos, aparentemente tão frágeis, são vetores de diversos agentes patogénicos, incluindo vírus e protozoários. Muitos microrganismos conseguiram adaptar-se a diferentes espécies destes insetos, utilizando-os como hospedeiros intermediários e definitivos. Acresce que os mosquitos têm alta capacidade reprodutiva em ambientes favoráveis. Em suma, as parcerias entre mosquitos e microrganismos são frequentemente bem sucedidas no que respeita à disseminação de doenças, de tal modo que estes insetos são por muitos considerados os animais não-humanos mais perigosos à face do planeta. Ora, ampliando as áreas geográficas por onde circulam, alargam-se as zonas por onde propagam doenças infecciosas. E, não bastasse tudo isto, somamos o facto de a maioria de nós viver em aglomerados populacionais e a intensa circulação de pessoas e mercadorias à escala mundial, e temos receitas perfeitas para epidemias e pandemias.
Nós, seres humanos, não estamos a passar impunes. O feitiço está mesmo a virar-se contra o feiticeiro. Quer queiramos quer não, as nossas ações provocam disrupção, não só de equilíbrios macroscópicos de todos os subsistemas da Terra e que facilmente identificamos ou identificaremos, mas também de equilíbrios delicados, que se desenrolam à micro-, nano- e picoescalas e que determinam a nossa vida, em primeira e última instâncias. Quando um agente infeccioso consegue aceder ao nosso organismo, vai competir pelos nossos próprios recursos, connosco e com outros microrganismos que albergamos e que trabalham para nós como um exército aliado e guardião. E, não são raras as vezes em que esses agentes patogénicos, que cabem aos milhares na cabeça de um alfinete, ganham. Pior do que ter um inimigo desconhecido, é ter um inimigo impercetível, com elevada capacidade para se multiplicar e que evolui muito mais rapidamente do que nós. E é assim o submundo dos microrganismos.
Se insistirmos em pôr a mão em nichos ecológicos inexplorados e preservados, dos quais deveríamos ser só maravilhados espetadores, vamos somar cada vez mais epidemias e pandemias e todas as suas consequências (de que, agora, já todos estamos bem cientes). Não vai ser possível continuarmos a correr atrás do prejuízo por tempo indeterminado. Vamos ter de repensar o nosso papel como o de apenas mais um mero habitante deste enorme casarão que não deve negligenciar o poder de nenhum outro coabitante. E, vamos ter de concertar ações para mudar o nosso rumo. A velocidade a que o faremos dependerá da nossa perspicácia para entender que o conhecimento e a tecnologia não conseguem resolver todos os efeitos adversos da ambição e do comodismo. Existem limites, e estes são os limites da vida.